segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Modelo-vivo, uma entrevista

O desenho é um dos mais fundamentais modos de expressão humana. Desenhar é compreender o que se vê.

Para muitos o desenho é apenas um processo, uma mera etapa no caminho da chamada "arte final". Outros o elevam ao mesmo panteão das outras artes, não mais como degraus numa escada rumo a um objetivo, mas como o objetivo em si.

Quem frequenta ateliês de desenho já sabe que um dos maiores desafios nesta prática é a representação da figura humana.

Aquarela de Renato Alarcão

"Se você desenha bem o modelo, todo o resto se torna mais fácil", é uma das máximas do professor Bandeira de Mello, a quem o ilustrador Renato Alarcão teve por mestre por vários anos em aulas de modelo vivo. Aos 80 anos de idade, o mestre Bandeira de Mello segue firme com um dos bastiões do ensino de desenho de modelo-vivo no Rio de Janeiro.

"É muito diferente você pegar uma fotografia e dali fazer um desenho", diz Alarcão. Ele completa: "na prática, uma pessoa diante de você é um objeto tridimensional, e a transposição daquela forma espacial para a superfície bidimensional do papel é um dos maiores desafios no campo do desenho."

Arte de Felipe Leery

No processo de aprendizagem do desenho de modelo-vivo, há que se lidar não somente com os desafios técnicos de interpretar a figura humana, a composição, as harmonias de formas, o uso da linha ou das massas, o "chiaroscuro", etc. Tão importante quanto o aprimoramente técnico é também o lado emocional, onde o estudante, muitas vezes ansioso por progressos rápidos, deve aprender também a administrar aquela gangorra de sentimentos de frustração e exultação que se alternam ao longo do lento processo de educação do olhar e da conquista da destreza manual. No desenho, assim como em qualquer expressão artística, não há atalhos no aprendizado.

Ao lado, estudo de Mário Proença

Mas o que um bom modelo deve possuir?

Seja por mérito de sua aparência, seja por outra razão qualquer, o primeiro quesito para alguém ser modelo vivo é ter uma presença que inspire o artista a produzir.

Esta é uma entrevista onde damos voz à um destes profissionais que nos inspiram. Patrícia Martins é uma das principais modelos com quem Renato Alarcão trabalha em suas aulas de desenho e pintura. Trazemos aqui um papo inédito com ela, recheado com trabalhos do próprio Alarcão e alguns de seus alunos.

Estudo de Ana Paula Teixeira

Patrícia, o que um bom modelo deve possuir?

"Normalmente quando o modelo, independente de sua formação e experiência, é um pouquinho exibicionista, um pouquinho narcisista ou tem uma figura expressiva (muito bonita ou muito feia, bem ossuda ou obesa, musculosa, ou com a pele sem marcas de roupa de praia, de pele muito escura, ou alvíssima, atlética ou pelancuda), ele faz de si um tema interessante. Se a pessoa faz isso voluntariamente ou não, isso pouco importa."

Estudos de Tiago Lacerda

Há quantos anos você trabalha como modelo-vivo?

"16 anos

Estudos de Taline Schubach


O que considera o mais difícil na sua atividade?

"É difícil posar nua no inverno..."

Ana Paula Teixeira

Ser modelo interfere na sua vida pessoal?

" Sim, um pouco...É difícil conseguir ter um namorado que não se incomode com este trabalho.É difícil não cair no papo do namorado que finge no início do namoro que acha isso super legal pra 1 mês depois tentar me convencer a parar de trabalhar com isso. É difícil não ficar irritada quando algum artista que me desenha ou me pinta diz que não permitiria que a mulher dele posasse. E nessas horas eu fico pensando "...se ele supõe que a nudez da esposa dele vai inspirar pensamentos devassos entre os artistas, devo temer que ele mesmo tenha pensamentos devassos enquanto eu poso nua.)

Existe diferença entre posar para estudantes ou posar para artistas experientes?

"Sim. Posar para os estudantes é participar da formação deles, inclusive no que diz respeito aos possíveis constrangimentos quando não estão acostumado à lidar com a nudez no processo de aprendizagem do desenho. Com os profissionais que têm interesse exclusivamente artístico, científico, ou de meramente aprender ou praticar o desenho, o trabalho flui bem."

Estudo de Dado "Demibold"

Já ganhou de presente muitos desenhos retratando você?

"Sim. Tenho um acervo de aproximadamente 80 trabalhos (desenho e pintura, alguns bons e outros nem tanto) nos quais a maioria dos resultados são inspirados na minha figura.Tenho também alguns retratos, mas são poucos."

Estudo de Ana Paula Teixeira

O que costuma passar pela sua cabeça durante as longas sessões posando?

"Nos primeiros anos eu era estudante de teatro, usava as horas de pose para repassar as cenas que eu teria que fazer no dia seguinte, na aula de teatro. Me afastei do teatro para ser aspirante a trapezista: treinava de 6 a 8 horas por dia e depois ia posar para alguém. Quando eu não dormia a aula inteira, morta de fadiga, era inevitável repassar os meus procedimentos acrobáticos durante o tempo de pose. Eu ficava imaginando os movimentos que eu tinha feito durante o dia executados pelo meu corpo de uma forma perfeita. As vezes fantasiava a execução daqueles movimentos num show. A minha cabeça era só o circo, tudo era secundário, eu só pensava no picadeiro."

Aquarela de Agostinho Ornellas

Fale mais dessa relação com o circo...

"Depois que eu me profissionalizei no circo, acho que amadureci e consegui finalmente desenvolver uma atitude menos introvertida: comecei a olhar para fora e a estudar a minha relação com os artistas. Eu notei que tudo o que eu fazia e não fazia influenciava sutilmente nos resultados. Então eu compreendi que a pose é um estado performático como outro qualquer e demanda preparação para cada performance, como no picadeiro e no palco, demanda atenção para a luz, a maquiagem, o penteado, os tecidos que vão aparecer na pose e assim por diante."

Estudo em gouache de Felipe Vellozo

Além do circo e do trabalho como modelo, você desenha ou pinta?

"De tanto observar estas pessoas me desenhando e me pintando, de um ano pra cá, eu tenho pensado somente em sugar com os olhos as habilidades das pessoas, ou simplesmente fantasiar como seria se as posições fossem invertidas. Tenho feito aulas de aquarela e acrílica com o Alarcão."

Aquarela de Agostinho Ornellas

Como é posar no Estúdio Marimbondo?

"O Marimbondo é o único lugar que eu trabalho onde os artistas estão 100% conectados com a realidade do mercado das artes visuais, em especial as artes gráficas (ilustração), animação etc. Em outros espaços e cursos vejo que alguns alunos se exercitam de uma maneira quase ritualística, como se aspirassem a carreira dos mestres da renascença só que nos tempos atuais. Eu percebo pela música que toca enquanto eles desenham, pelos comentários que são feitos, e por muitos outros sinais, que há uma grande resistência em conectar as habilidades desenvolvidas no estudo de modelo vivo com as linguagens artísticas da contemporaneidade. No Marimbondo, talvez por ter turmas formadas majoritariamente por aspirantes a ilustradores, animadores, designers, profissionais e estudantes de design, há uma tendência a não fantasiar uma carreira de artista de atelier. Esta proposta do estudio marimbondo de prezar pela presença constante (e nunca econômica) de um modelo dentro da sala de aula como parte do material disponível para o aprendizado dos alunos, oscilando entre o clássico e o contemporâneo, os mantém de mente aberta para o novo, mais próximos de elementos da atualidade e vacinados contra aquele clima de criticismo exacerbado que é típico da maioria dos ateliês com propostas 100% acadêmicas."

Estudo em gouache sobre papel azul, de Felipe Vellozo

2 comentários:

Fernanda disse...

A Patricia é uma das melhores modelos que desenhei e desenho (não que tenham sido tantas), pois tem excelente consciência corporal e sabe criar poses interessantes e mantê-las.
Adorei a entrevista, Alarca. Legal conhecer o "outro lado", o de quem é visto e desenhado, além do ponto de vista dela sobre os diferentes meios em que posa (ateliês, estúdios etc., e as ambições e aspirações de quem neles estuda).
Também gostei muito dos estudos postados, são realmente bons!!

Pacha Urbano disse...

É ver a modelo como gente que tornou esta entrevista interessante. É comum a gente tornar a modelo um objeto mesmo, não só no papel, mas na impessoalidade no tratamento, inclusive pelo fato de estar nua, distanciando o constrangimento do nu, coisa e tal.
Perceber que enquanto estamos analisando a modelo a modelo também está nos analisando é fantástico.
Faça mais entrevistas destas, Alarcão, é muito legal.